Neurociência da Memória: Desvendando o Método de Sherlock Holmes

Quem nunca reclamou de “problemas de memória” e não gostaria de melhorá-la?

Os fãs de Sherlock Holmes sabem bem o que é isso! Eles certamente desejariam, além de sua habilidade lógica, sua capacidade de armazenar uma infinidade de informações e recordar mínimos detalhes essenciais para resolver crimes. Na série “Sherlock”, uma das adaptações desse famoso detetive, descobrimos como ele consegue memorizar tantas coisas: em um dos episódios, Sherlock Holmes utiliza uma técnica chamada “Método de loci“, também conhecida como “Palácio da Memória”.

Antes de mergulharmos nessa técnica, que tal entender um pouco sobre a neurobiologia da memória? Será que existem explicações científicas que embasam o método de loci?

Tipos de memória

Embora ainda exista um debate sobre a classificação dos tipos de memória,1 ela pode ser classificada, de acordo com sua duração, em memórias de curto prazo ou de longo prazo (Figura 1).2

A memória de curto prazo se refere às informações que temos disponíveis por um curto período de tempo,3 elas são formadas no cérebro em segundos a minutos e podem durar algumas horas.2

Já a memória de longo prazo permite que as informações sejam armazenadas por um longo período, até mesmo para a vida toda.3 O processo de armazenamento desse tipo de memória é mais demorado, mas faz com que ela seja relativamente permanente.2

A memória de longo prazo ainda pode ser dividida em dois tipos:3 

  1. Memória declarativa (ou explícita): Refere-se às informações que podem ser lembradas conscientemente, como fatos e experiências pessoais.
  2. Memória não-declarativa (ou implícita): Refere-se a habilidades inconscientes, como andar de bicicleta

Quando Sherlock Holmes faz um esforço para se lembrar das memórias, se trata das memórias declarativas.

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Figura 1. Classificação simplificada dos tipos de memória. (Adaptado de Camina E, et al. Front Pharmacol 2017;8:438.3)

Como esse tipo de memória se forma no cérebro?

Diferentes tipos de memórias são associados a diferentes áreas do cérebro.3 Aqui vamos abordar a formação  das memórias declarativas.

Para ser armazenada, a memória passa por uma etapa chamada “codificação”, que se refere a processos cognitivos e neurais em que uma informação é transformada em uma representação neural, isto é, como ela vai ser representada e transmitida na “língua dos neurônios”.4 

As principais áreas do cérebro relacionadas à formação da memória declarativa são (Figura 2):3,5

  • hipocampo (associação entre cenas e objetos, formação da memória);
  • córtex entorrinal (distribuição de informações de e para o hipocampo);
  • córtex perirrinal (codificação de objetos);
  • córtex parahipocampal (codificação de cenas).
Figura 2. Estruturas relacionadas à formação da memória declarativa. A) Hipocampo (azul-esverdeado), córtices entorrinal (marrom) e perirrinal (amarelo) e parahipocampal (esbranquiçado). B) Esquema simplificado das conexões do sistema de formação da memória declarativa. As informações entram pelas áreas de associação e são transmitidas ao córtex perirrinal e parahipocampal, para o córtex entorrinal e então para o hipocampo. Através de uma estrutura do hipocampo, as informações voltam ao córtex entorrinal, para o córtex perirrinal e parahipocampal e de novo às áreas de associação. (Adaptado de Squire LR, et al. Cold Spring Harb Perspect Biol 2015;7(3):a021667.5 Raslau FD, et al. AJNR Am J Neuroradiol 2015;36(5):846–9.6)

Na formação da memória de longo prazo, após sua recém-codificação, ela ainda está “frágil”, isto é, pode sofrer interferências. Mas com o tempo, ela passa por um processo chamado “consolidação”, que a torna mais forte e resistente a interferências, se tornando “fixada” e armazenada.7

Inicialmente, a memória declarativa depende das informações armazenadas no hipocampo e no neocórtex (que compreende áreas mais desenvolvidas do córtex cerebral). Durante a consolidação, o hipocampo guia a reorganização dessas informações no neocórtex, e com o tempo, o armazenamento e recuperação dessas informações vão deixando de depender do hipocampo e passando para uma memória mais permanente que se forma no neocórtex.8

Método de loci 

Agora que você já sabe um pouco mais sobre memória, vamos falar sobre esse método!

O método de loci (lugares em latim) é uma das técnicas mais comuns para melhorar o desempenho da memória. Esse método foi desenvolvido na Grécia antiga e tem como base a navegação mental, ou seja, o indivíduo faz um trajeto em sua mente passando por lugares conhecidos. Os elementos que devem ser lembrados (ex.: lista de palavras, números, cartas de baralho) são colocados em pontos estratégicos do caminho que o indivíduo faz em sua mente. Dessa forma, ao passar pelo caminho, o indivíduo vai coletando essas informações. Isso requer muito treinamento, mas quem utiliza esse método, como os participantes de campeonatos de memória (e Sherlock Holmes), pode memorizar uma lista impressionante de informações aleatórias!9

Veja um exemplo no qual é apresentada a seguinte lista de palavras:

  1. Maçã;
  2. Boneca;
  3. Sacola;
  4. Cadeado;
  5. Sombra;
  6. Bailarina;
  7. Massagem.

Uma pessoa que utiliza o método de loci pode imaginar um caminho da própria casa, uma vez que o formato da sua casa está dentro da sua memória de longo prazo, e pelo qual vai “recolhendo” essas palavras (Figura 2):

Figura 3. Exemplo de uso do Método de loci. O indivíduo passa por um caminho mental conhecido, onde vai “recolhendo” os elementos que devem ser lembrados (palavras em azul).

E o que diz a neurociência sobre o método? 

Em competições de memória, os participantes normalmente são avaliados logo após estudarem a lista de elementos, ou seja, uma memória mais de curto prazo. Mas quais seriam os efeitos do treinamento da memória com o método de loci na formação de memórias de longo prazo, mais duradouras? 9 

Para responder essa pergunta, pesquisadores compararam quantas palavras de uma lista os participantes conseguiam se lembrar. Além disso, fizeram imagens de ressonância magnética funcional (RMf) dos cérebros dos participantes enquanto eles faziam o treino da lista de palavras aleatórias, depois do treino e também depois do teste.9 

Num primeiro estudo, os pesquisadores avaliaram campeões de memória e indivíduos controle que não tinham essa prática. Os participantes passaram por um treino, no qual as palavras eram apresentadas e foi pedido que se lembrassem do máximo de palavras da lista (teste) 20 min após o treino. Como esperado, os campeões de memória se lembraram de mais palavras que os indivíduos controle.9

Na segunda parte do estudo, participantes que não realizavam treinos de memória passaram por 6 semanas de treinamento com o método de loci enquanto outros participantes foram divididos em grupo controle passivo, que não recebeu nenhum tipo de treinamento, e grupo controle ativo, que foi treinado com outra estratégia, chamada “treino da memória de trabalho”. Para avaliar a duração das memórias, nessa parte do estudo, o teste foi realizado em 20 min, 24 h e 4 meses após o treino. Os autores definiram como “memórias fracas” aquelas palavras que eram lembradas após 20 min, mas não após 24 h e como “memórias duráveis” aquelas que poderiam ser lembradas após 24 h ou mais.  9

Os participantes que foram treinados com o método de loci apresentaram um aumento significativo das memórias duráveis (diferença de antes e depois do treinamento) em comparação com os grupos de controle ativo e passivo. No entanto, para as memórias fracas, a mudança na quantidade de palavras lembradas entre antes e depois do treinamento não foi diferente entre os grupos.9  

Além disso, esses participantes treinados com o método de loci apresentaram atividade cerebral parecida com a dos campeões de memória quando memorizavam as listas de palavras: uma diminuição da atividade em áreas envolvidas no processamento de informações visuais e espaciais e codificação de memória. No entanto, após o treino da lista de palavras, durante a consolidação da memória, uma maior conectividade hipocampo-neocortical (circuito associado à formação de memórias de longo prazo), foi relacionada ao número de memórias duráveis que os participantes formavam.9

Os autores sugerem que o método de loci combina aspectos-chave que afetam a memória, como processamento de informações visuais e espaciais, conhecimento prévio e novidade. Apesar de inesperada, a diminuição da ativação de algumas áreas durante a codificação da memória junto ao aumento da conectividade de áreas relacionadas à consolidação da memória pode estar relacionada a uma maior eficiência das redes neurais em indivíduos que utilizaram o método de loci.9

Com esses resultados, até ficamos com vontade de treinar esse método!

Veja também a matéria sobre as Vantagens dos infográficos na comunicação médica

 

Referências bibliográficas 

  1.  Norris D. Short-term memory and long-term memory are still different. Psychol Bull 2017;143(9):992–1009.
  1. Vianna MR, Izquierdo LA, Barros DM, Walz R, Medina JH, Izquierdo I. Short- and long-term memory: differential involvement of neurotransmitter systems and signal transduction cascades. An Acad Bras Cienc 2000;72(3):353–64.
  2. Camina E, Güell F. The Neuroanatomical, Neurophysiological and Psychological Basis of Memory: Current Models and Their Origins. Front Pharmacol 2017;8:438.
  3. Davachi L, Dobbins IG. Declarative Memory. Curr Dir Psychol Sci 2008;17(2):112–8.
  4. Squire LR, Dede AJO. Conscious and unconscious memory systems. Cold Spring Harb Perspect Biol 2015;7(3):a021667.
  5. Raslau FD, Mark IT, Klein AP, Ulmer JL, Mathews V, Mark LP. Memory part 2: the role of the medial temporal lobe. AJNR Am J Neuroradiol 2015;36(5):846–9.
  6. Bisaz R, Travaglia A, Alberini CM. The neurobiological bases of memory formation: from physiological conditions to psychopathology. Psychopathology 2014;47(6):347–56.
  7. Squire LR, Genzel L, Wixted JT, Morris RG. Memory consolidation. Cold Spring Harb Perspect Biol 2015;7(8):a021766.
  8. Wagner IC, Konrad BN, Schuster P, et al. Durable memories and efficient neural coding through mnemonic training using the method of loci. Sci Adv [Internet] 2021;7(10). Available from: http://dx.doi.org/10.1126/sciadv.abc7606